31/05/2014

Correntes de gelo - Salão de luzes vermelhas (quarta parte)

Entramos no salão sem dizer uma palavra, lá dentro todos os convidados estavam congelados em um cristal translúcido esbranquiçado e algum desses cristais emitia um brilho dourado, não havia mais a decoração do casamento, os alimentos estavam ressecados e enegrecidos, pareciam carbonizados e não havia sequer uma gota de água. O ambiente era seco e poeirento, com uma temperatura morna e desconfortante, em todo o lugar se via uma substância lodosa com um brilho marrom claro e nuance voltadas para o vermelho, essa parecia ser a principal fonte de luz do ambiente, as paredes estavam cobertas dessa coisa que parecia viva e pulsante.





- O que está acontecendo – perguntou a Cy agarrando o braço do Léo.

- Não sei ao certo, mas é como se tivéssemos em outra dimensão, uma espécie de pesadelo! Repare, eu não consigo sentir meu coração bater! – no mesmo instante coloquei minha mão no peito e não senti nada, tentei sentir o sangue pulsante no meu pescoço e também não senti nada, a sensação era de ter morrido.

- Eu também não sinto nada – a Cynthia só confirmou com a cabeça, confirmando.

- O que devemos fazer Hill? Devemos entrar ou esperar?

Eu nem pensei, fui direto para dentro. – Vou entrar Lell, a Valentina está lá dentro. Não posso largar ela sozinha dentro dessa coisa!

- Certo, vamos entrar! Mas, amor, fique no nosso meio, entre Hill e eu. Se algo ruim acontecer lembre-se que nosso Deus é forte! – disse o Lell colocando a Cynthia entre nós dois, ela era bem mais baixa e quase sumiu.

As portas estavam abertas e perto do altar dava para ver o Fabiano preso num cristal dourado com a Valentina do lado presa num cristal também. Ao entrarmos eu estava apreensivo, o modo que fico quando a Valentina acha que sou cético demais. Um estrondo em nossas costas “BAM!”. Olhei para trás e a entrada estava fechada com uma porta toda enferrujada, agora estávamos aprisionados lá dentro também, com um salão preenchido com uma luz avermelhada e cheio de pessoas aprisionadas em cristais.

Podemos identificar algumas pessoas também. – A Má está presa também! – disse a Cynthia deixando escapar a voz num tom meio alto, devido ao nervosismo.

- Calma Cy! Não vamos fazer barulho! – disse o Lell. A cada passo podíamos identificar um amigo ou parente. Com muita cautela chegamos até o altar, chegando perto do cristal que cobria a Valentina, cheguei bem perto e examinei bem sem tocar em nada, mesmo de longe sentia o frio que emanava do cristal, tinha um formato que lembrava um diamante. O Lell se abaixou – Olha Hill tem uma pequena rachadura perto do pé dela e essa gosma vermelha brilhante parece estar tentando entrar!

Tentei mover o Cristal do lugar, o Lell ajudou, mas parecia mais firme que concreto, não se moveu, olhei para o Lell desesperado ele e a Cy estavam começando a ficar desesperados, joguei o terno por cima o Lell automaticamente fez o mesmo, tentamos mover, girar, tirar aquele casulo de vítreo e gelado balançando de um lado para o outro e nada, não movia um milímetro sequer.

- O que é isso? – a Cy deu um grito tão repentino que paramos imediatamente e olhamos assustados para ela.

Ela fitava um canto do salão, quando olhei na mesma direção que ela estava fitando fixamente o olhar eu entendi o motivo do grito. Aquela criatura dos meus sonhos estava no salão, mas dessa vez não parecia um vulto, nem algo intangível, era asquerosa e horripilante, uma de suas cabeças tinha apenas um olho e uma boca enorme, a do meio parecia ser uma garota jovem de cabelos longos e rosto alongado, o nariz inchado e olhos vermelhos como sangue, a da esquerda tinha três olhos e a boca estava costurada, era corpulenta e lembrava uma bruxa, ou três bruxas misturadas com uma criatura, toda deformada.

- Lell é ela, exatamente como no sonho!

- Parecem àquelas três cabeças que nós havíamos visto naquela madrugada em sua casa... É ela mesma Hill! Ela voltou Hill! – Não vou negar que fiquei um pouco feliz mesmo em meio a tudo isso, finalmente vi o Lell voltar à antiga forma, estava com o cenho franzido, protegendo a Cybele com seu braço direito, agressivo como um felino cercado e aprisionado. Ele trouxe a Cybele até perto de mim e do cristal que envolvia a Valentina. Não tirávamos os olhos da criatura por nenhum instante, nem piscávamos.

– Hill, simplificando, se ela atacar eu vou pela esquerda e você vai pela direita! – disse ele dando um toque em minha mão.

- Ok Lell! Pena que estou fora de...

Fui interrompido, pois a boca que estava costurada da cabeça direita da criatura se abriu e saiu um monte de insetos que pousaram nos cristais e se incendiavam ao tocar neles.

- U, HU, HUAHA! – uma risada rouca e rasgada. Numa voz ainda pior que a risada a criatura ofensivamente grunhiu

- Não tem nenhuma chance contra nós, vamos matar todos vocês!

Um brilho estranho surgiu atrás da cabeça da direita, parecendo uma auréola, ela começou a murmurar: - Borgh! Cragh! Espakigh!

Um som estridente parecendo uma microfonia ardeu em nossos ouvidos e subitamente uma esfera de luz azul disparou na direção do Lell e da Cy. Ele se jogou na frente dela e cruzou os braços para protegê-la do impacto.

– Lell! – eu gritei partindo para cima da criatura.

Ahhhhhhh! Toma isso sua criatura dos infernos! – Bradei tentando soca-la de cima para baixo dando um salto. No mesmo instante a criatura proferiu duas palavras incompreensíveis e meu braço travou no ar, fiquei pendurado como se alguma coisa invisível estivesse segurando meu antebraço. Sentia uma dor horrível nas juntas do cotovelo, parecia que meu braço ia rasgar e eu cairia no chão. Quando olhei para trás o Lell havia caído por cima da Cy, ele fitava os braços enegrecidos e sangrando com desespero, pareciam estar carbonizados. – Tudo bem amor? – disse ele, ela com as mãos nas costas que estavam doloridas, olhou por sobre ele e disse: - Estou bem amor! Olha aquilo! – ela apontava para o leste do salão, havia um cristal sendo bombardeado pelos insetos, estava rachando quase que completamente e a pessoa dentro dele estava ficando roxa.

– Precisamos fazer algo! - Disse ela.

O Lell correu na direção da criatura, percebi que ele iria desferir um golpe na cabeça dela, um sorriso leve, porém perceptível surgiu em uma das cabeças da criatura, era exatamente o que ela esperava. Eu estava ali desesperado, pendurado no ar por meu braço direito. Fiz a coisa mais inusitada no momento.

– Pai socorro! – clamei em meus pensamentos.

Creio que até aquele momento nunca tive uma oração tão sincera como aquela, somente duas palavras, mas traduziam tudo o que eu precisava e ansiava no momento. Um brilho surgiu como um flash, a dor no meu braço desapareceu, e percebi que mesmo meu braço estando travado, as minhas pernas estavam ao alcance da criatura, esperei até que o Lell estivesse perto dela, então gritei.

– Lell! No joelho!

Preparei-me para poder desferir um chute certeiro no joelho da criatura, forçando contra suas articulações, usei o meu braço paralisado no ar para subir meu corpo. O Lell deixou o corpo cair um pouco esticando as duas pernas no ar, seus pés acertaram o joelho da criatura em cheio e um estalo alto e agonizante, embora pra mim, naquele momento foi um som bem agradável de ouvir, soltei meu peso e desferi um chute contra o outro joelho de cima para baixo e outro estalo. A criatura cedeu e agachou-se apoiada no joelho que eu acertei. Senti meu braço se soltar, o Lell estava de bruços no chão, aparentemente bem mesmo com os braços naquele estado, a dor no meu braço voltou, como se a carne dentro dele estivesse dilacerada. Aquela bruxa dos infernos estava apoiada com os braços no chão, ergui a perna e desci com o calcanhar na nuca dela ela caiu de vez e tentou se levantar. No momento só pensava no que ela faria se estivesse no controle da situação, imaginava ela quebrando o cristal que protegia a Valentina. Enquanto o Lell se levantava eu desferia socos nas cabeças da criatura com força e velocidade, ignorando totalmente a dor no braço e nas mãos, a ponto de desfigurar as três faces da criatura. Pude sentir alguns ossos dela se quebrarem e vi alguns dentes dela no chão ensanguentado. A criatura estava aos berros parecia um animal sendo sacrificado, minhas mãos sangravam, estavam cortadas de tanto acertar ossos e dentes, mas eu não parava nem diminuía o ritmo, estava tomado por um frenesi. Parei apenas quando o Lell entrou na minha frente.

– Está bom Hill chega!

Respirei fundo com lágrimas nos olhos, a criatura estava inconsciente no chão, soltava um grunhido quase inaudível e tinha espasmos. Eu virei pro Lell e disse.

– Não Lell essa criatura queria destruir a gente, minha família, meus amigos e minha mulher! Não existe por que perdoá-la! - eu respondi.

– Não faça isso Hill, nós não sabemos se é certo matar essa coisa! - disse ele se aproximando e usando o corpo para me ajudar a levantar de cima da criatura, não podia fazê-lo com os braços nas condições que se encontrava.

Em segundos a coisa saiu rastejando, tossindo, cuspindo sangue e resmungando algo incompreensível, percebemos que a criatura tinha uma coisa ligada nela, uma espécie de cordão umbilical, uma corda feita de carne. O Lell pisou com força nessa corda de carne dizendo.

– Vamos Hill, vamos cortar isso! – Eu peguei a corda com as mãos e fiz um esforço até se romper – Esta coisa está quente Lell! – Eu disse enquanto a criatura foi sumindo para dentro de um buraco que se abriu embaixo dela enquanto gritava coisas irreproduzíveis pra um humano.

Um clarão nos cegou e quando conseguimos ver novamente estávamos no estacionamento de novo.

– Cuidado Amor! - gritou a Cy.

Um carro vinha na direção deles, o Lell pulou e empurrou-a para o lado, batendo no capo do carro, ele se protegeu com os braços cruzados, da mesma forma que protegeu ela do ataque da criatura, eu consegui escapar quase ileso, exceto que o retrovisor do carro acertou meu braço direito que ficou dolorido.

– Ahhh! – um grito veio de dentro do salão.

Corremos os três juntos para dentro, o Lell acenou para o motorista indicando estar tudo bem e saiu logo atrás verificando seus braços.

O ar condicionado da zona leste do salão havia se desprendido e caído, acabou acertando um garçom. Olhamos um para os outros e dissemos ao mesmo tempo: foi no mesmo lugar onde o cristal rachou.

Chegamos perto e o rapaz já havia sido atendido por outros convidados, ele havia deslocado o ombro. A ambulância chegou rápido, mesmo assim até ela chegar o rapaz sozinho já havia colocado o ombro no lugar. Pra quem nunca viu isso acontecer parece uma coisa horrível, mas ele disse que isso acontece com aquele braço com frequência, porque ele rompeu os ligamentos quando era mais novo. Ficou sentado num canto dentro da cozinha pondo gelo no ombro e em menos de 10 minutos já queria voltar a trabalhar. As coisas já estavam voltando ao normal dentro do salão quando o Lell me chama de canto.

- Hill não é aquela menina amiga da “Su”?

- Não a vi, qual delas? - respondi.

- Ali perto da entrada principal!

Eu fui seguindo na direção dela pra ver se a reconhecia. Quando alguém pega na minha orelha e dá um puxãozinho. Era a Valentina.

- Vamos coração! Temos que tirar algumas fotos com os padrinhos! - disse ela e eu manhosamente respondi brincando, tentando disfarçar o nervosismo.

- Ai! Ui! Ai! Vai com calma Vah!

De relance ainda vi o Lell indo na direção dela, sempre mexendo nos braços que estavam obviamente doloridos devido a pancada com o carro.

Passei algum tempo com a Valentina e um monte de convidados, eu ia me acalmando, sem vultos, sem aparições, gosmas vermelhas, nem sussurros arrepiantes nas costas. Eu nem acreditava como ainda conseguia ficar feliz por estar fazendo coisas tão banais depois de tudo o que passamos. Sei que é um desafio lembrar-se de coisas sobrenaturais como estas. Para nossa mente suportar as experiências é comum que nosso cérebro tente encontrar uma explicação que seja mais plausível, mas neste caso estava fácil distinguir, tudo foi muito real.

Algumas palavras do sonho que tive naquela noite, também não saiam da minha mente, martelando em minha cabeça: “A diferença é que se continuar neste caminho você não sofrerá!”. Bem eu não estava disposto a sofrer então comecei a manter minha mente mais alerta, e sempre orar em meus pensamentos. Mas tudo estava longe de acabar, era a única certeza que eu tinha.