15/07/2013

Correntes de Gelo - O mundo seco (primeira parte)

O mundo seco - O elo segundo Hil





     O dia do casamento estava chegando e eu estava atarefado até o pescoço, faltava muitas coisas para resolver, detalhes e detalhes que me fugiam da memória. Principalmente nesses últimos dias, eu acabei desaparecendo de perto de todos os meus amigos e conhecidos, entregando convites, acertando as contas para pagar e tentando não relaxar nos estudos. Como sou bolsista minhas notas precisam ser altas ou perco o benefício, e neste momento da minha vida eu não posso bancar mais uma despesa. Já estava dormindo em média umas quatro a cinco horas por noite, cansado, irritado e não conseguia me concentrar em quase nada, minha memória estava ainda pior.
Acordei tarde na quinta-feira da semana do casamento, que aconteceria no sábado, e perdi um dia no trabalho, aproveitei para resolver as coisas mais atrasadas e em “atrasadas” eu incluí também meu sono, dormi umas dez horas seguidas nesta noite. Então liguei para a minha noiva.



- Coração, perdi a hora hoje e pedi o dia de folga no serviço, se precisar de mim estarei resolvendo as coisas do casamento que estão atrasadas! Te amo minha Linda!
Ela como sempre ficou preocupada, mas entendeu a situação. Até mesmo para dar atenção à ela faltava tempo, estávamos quase à dois meses sem tempo um para o outro, mal nos víamos e o tempo que estávamos juntos, embora não faltasse respeito e carinho, faltava o namorar. No meio do dia me senti fadigado de resolver os preparativos da tão esperada festa, e fui preparar algo para comer, afinal já se passavam das três horas da tarde e ainda não havia comido nada. Sentado comendo um pão com ovo, sei que pão com ovo não é considerado a melhor das refeições, mas odeio fazer comida só para mim, embora eu adore cozinhar para meus amigos, sentado na mesa deixei meus pensamentos divagarem, voaram longe olhando para a parede branca da copa, repentinamente me bateu um aperto no peito, uma sensação de solidão naquele silêncio da tarde, me dei conta que há um bom tempo não tirava um tempo de qualidade para orar fazia algumas semanas. Me ajoelhei ali mesmo e orei.
- Senhor me perdoe por isso, por andar ausente e não dedicar mais tempo à ti, Você não merece o que ando fazendo, desculpe mesmo Pai, estou aqui para o Senhor e o que quiser de mim eu farei! Só me diga o que devo fazer!
Aquela sensação ruim passou no mesmo instante. Senti a velha paz retornar, calmante, quase uma letargia, a paz que poucos conhecem, paz que veio não apenas porque eu havia orado, mas porque eu me lembrei como era bom me esvaziar do meu ego e saber que eu não estava só. Mesmo de pé continuei a oração em meus pensamentos lembrando dos anos passados junto aos meus amigos, das aventuras, alegrias e dificuldades que passamos.
A vida tende a voltar a nos engolir e minha sexta feira foi do mesmo jeito, corrida e atarefada, a ponto de eu não me lembrar mais quem eu era. Fiz todos os últimos preparativos para o casamento, repassei a lista de convidados, não havia me esquecido de ninguém. Acabei adquirindo o hábito de anotar tudo em papel devido a memória falha dos últimos meses. Minha família chegaria na cidade no sábado e meus amigos de fora da cidade já estavam todos acomodados com outros amigos ou parentes. Naquele mesmo dia ainda tive que ir à faculdade, mas sabia que no outro dia eu poderia fazer o que eu quisesse, minha noiva estaria ocupada o dia todo, nos encontraríamos somente no casamento, estava morrendo de saudades de minha pequena, quase uma semana sem nos vermos. Estava muito ansioso pelo casamento e para encontrá-la, mas estava muito cansado. Fui dormir antes das onze, infelizmente minha noite não foi tão reconfortante como pensei que seria.


Me revirei na cama a noite toda e pegar no sono de repente tornou-se uma tarefa árdua. Quando finalmente adormeci tive um sonho, um daqueles sonhos perturbadores onde não se consegue distingui-lo da realidade. Eu estava dormindo no chão como fazia quando adolescente, deitado em meu antigo quarto de muitos anos atrás. Estava escuro e mesmo de olhos bem abertos só podia ver a silhueta da janela e um enfeite que tinha na parede. Um pavor começou a me tomar pois não conseguia mover nem um músculo do meu corpo, eu respirava ofegante e podia mover apenas meus olhos, tentei pedir ajuda mas minha voz ficou entalada na garganta. Com muita dificuldade parecia que a voz iria sair ao passo em que tentava mover meus lábios, mas quando me dava conta eu não havia conseguido nem movê-los, quanto mais emitir algum som de desespero. Permaneci algum tempo neste estado e procurei me acalmar, não era a primeira vez que isso acontecera, eu sabia que era só esperar um instante, e aos poucos a tranquilidade permitia o tempo passar mais rápido e eu voltaria a me mover. Já calmo ouvi uma voz conhecida, era meu amigo Léo.
- Cara eu tive um sonho estranho! - disse ele com voz de sono, mas não vi nada pois eu ainda não conseguia virar meu pescoço.
Tinha três cabeças sinistras nos olhando pela janela, demoníacas como bruxas deformadas! - meu desespero voltou na mesma hora, aquilo não parecia ser mais só um sonho, eu sabia, já havia estado naquele quarto há muito tempo atrás, estava revivendo a mesma noite, com o Léo do meu lado dizendo as mesmas coisas.

Isso começou anos atrás quando nós decidimos orar por uma amiga em comum que havia se interessado por coisas ocultas, ela tinha até participado de alguns rituais, mas queria abandonar quando passou a se sentir perseguida o tempo todo e coisas realmente estranhas começaram a acontecer com ela.
Eu não sabia como, muito menos o porquê eu havia retornado para aquele quarto exatamente naquela noite, mas para o meu maior espanto, eu podia me ver como uma terceira pessoa, sentado na cama ao lado do Léo. Já não estava mais imóvel, na verdade é como se eu nem tivesse corpo.
- Vamos orar! Vi uma coisa arrepiante! - disse ele.
- Eu vi a mesma coisa, mas não tenho certeza se estava dormindo ou acordado. - havia sido exatamente o mesmo diálogo que tivemos naquela noite, palavra por palavra. Pude ver ainda nós dois ajoelhando de mãos dadas e orando. Um barulho horrível veio da sala no mesmo instante.
- Você ouviu isso? - ele me perguntou.
- Ouvi sim! - respondi.
Enquanto permanecia sem poder me mover com os olhos fixados na janela, com o canto dos olhos pude ver nós dois saindo em direção ao quarto onde dormia minha mãe. Uma voz suave sussurrou em meus ouvidos:
- Eu não me esqueci desta noite! Nem você deveria esquecer! Eu sofri muito e agora vou fazer vocês sofrerem também!
Na janela pude ver as três cabeças sorrateiramente me olhando para dentro do quarto, pisquei com força, esperei uns cinco segundos na esperança de acordar e abri os olhos. Eu não estava mais no quarto, infelizmente tão pouco acordado, estava fora da casa olhando para aquela criatura hedionda na janela, percebi que não eram três pessoas mas uma criatura só, corcunda e corpulenta, tinha três cabeças. Uma mão me tocou amigavelmente nos ombros e um homem disse.
- Se acalme! você já vai voltar para o seu verdadeiro quarto! Eu precisava te mostrar estas coisas para você não esquecer! Foi nesta mesma noite que você orou pedindo que Ele os usasse como Ele quisesse, que não importaria o sofrimento desde que a Vontade estivesse sendo feita! E nesta mesma noite você recebeu sua resposta. - Minha vontade será feita com sua ajuda ou sem ela, a diferença é que se continuar neste caminho você não sofrerá! - estas palavras foram repetidas com a mesma entonação e o mesmo peso, por alguém que estava na minha frente olhando diretamente para mim e eu para ele, mas por mais que eu tentasse, não conseguia me lembrar do seu rosto ou da sua voz. Eu não sabia se já conseguia falar, mas mesmo que tentasse creio que não poderia.
Após algum tempo ele continuou a falar.
- Avise os outros! Ainda hoje vocês se depararão com o que está para acontecer e desta vez vocês verão tudo com um ponto de vista diferente! Que nenhuma fé se endureça, que nenhum coração dentre vocês esqueça o Amor. Que nenhum companheiro seja deixado para trás!
...continua