12/12/2010

Uma noite em Eclesiastes 7

O funeral

      Você já percebeu como nossa vida e toda sua perspectiva pode mudar em apenas alguns segundos? Não? Então deixe lhe contar o que aconteceu comigo.

      É de longa data que gosto de estudar e discutir comerciais, propagandas e principalmente textos publicitários. Este alias é meu trabalho, sendo assim aprendi muito sobre jargões da sociedade, da sabedoria popular e os famosos ditados chineses, hebraicos, hindus, e por aí vai uma infinidade de frases curtas com seu cunho de sabedoria. Estive numa luta interna de conceitos entre as coisas que acredito contra coisas que realmente sinto e vivo que acabou por mudar o significado de uma destas frases pelo resto da minha vida. Tudo começou com meu amigo Jaime.
      Jaime é um rapaz tranquilo daqueles que não perturbam ninguém e também muito bem quisto por todos. Seu carisma é irradiante, daquele tipo de pessoa que todos querem ter como amigo. Me considero afortunado por tê-lo como amigo desde a infância embora na adolescência perdemos o contato. Já não nos víamos a alguns anos. Mas num certo dia, já adultos, nos reencontramos e senti muita alegria em revê-lo. Ele já estava casado e acabara de se tornar pai, de uma linda menina, por sorte mais parecida com a mãe. Ele estava radiante de alegria e me contou que iriam se mudar pois conseguira uma oferta de emprego melhor em outro estado. As conversas foram fluindo e eu me deliciava ouvindo suas novas experiências, enquanto ele empurrava o carrinho de bebê com sua filha. Percebi como certas coisas da vida são engraçada. Do fundo do meu coração eu amava meu amigo e isto fazia mais bem à mim do que a ele. Como foi prazerosa aquela conversa, pena que não durou para sempre.
      Alguns anos depois, num domingo de manhã minha namorada disse que alguém que com quem ela havia trabalhado, uma pessoa muito querida, havia falecido, mas eu não senti absolutamente nada a respeito do comentário, nem compaixão pela pessoa, nem por ela por dizer que estavva triste. E mesmo tendo visto muitos amigos tristonhos e chorosos, não brotou em mim nenhum sentimento. Assim passei o meu dia normalmente.
      Ah se eu soubesse o que estava por vir. Friamente, mas com ternura, eu até conversei com vários amigos que conheciam a pessoa falecida. Falei que aqueles que se foram já partiram e agora dependem somente de Deus. Com certa amiga que estava realmente com as emoções a flor-da-pele disse, que era hora dela ser mais forte para poder auxiliar os familiares mais próximos que ficaram sem a presença da pessoa que falecera. No mesmo dia acabei fazendo vários discursos semelhantes a este.
      Através daquela amiga que parecia ser a que mais estava sofrendo, soube que a pessoa falecida tinha um cônjuge, re-afirmei todos os meus conselhos, dizendo que o cônjuge era quem mais iria precisar de ajuda nos dias que se seguiriam após o funeral. Também descobri que o casal desafortunado deixara uma filha mais velha e estavam para ter gêmeos quando a fatalidade aconteceu. Mesmo assim naquele instante eu não estava emocionalmente envolvido com a história. Lembro de até termos feito, ainda naquela noite, uma oração para que as pessoas mais próximas lidassem com a dor da perda. Quando alguém sitou o nome da pessoa falecida e do cônjuge que ficou sozinho devido as garras da morte, eu nem percebi que era o nome do meu amigo havia sido pronunciado. Até me espantei com minha frieza pois normalmente sou mais emotivo que minha namorada e naquela noite ela estava realmente abalada enquanto eu estava pensando frivolamente no que iriamos comer. Mas eu ainda não tinha ideia do que me iria acontecer em breve.
      Estava de forma egoísta desfrutando mais um tempo com meus amigos. Esta história para mim era apenas isso mais um funeral entre tantos que ocorrem em minha cidade dos quais eu sequer tenho conhecimento. Mas cruel é a semente da dúvida. Eu já tinha minhas convicções sobre mortes, funerais, enterros, sobre aqueles que se foram e aqueles que ficaram, eu sei o que é estar num funeral quando é você que perdeu alguém e sei o quanto precisam dos amigos aqueles que estão no funeral, mas fora de um caixão. Aqueles que se chocam com a perda brusca e a realidade de viver com um a menos para amar, mesmo ainda tendo tanto amor para oferecer àquela pessoa. Os que se fragilizam e procuram alguma razão para explicar a dor que é indescritível. Mas o que eu não sabia e infelizmente fiquei sem saber até o momento do funeral que aconteceria somente no dia seguinte. Era se realmente a história do Jaime que ouvi durante aquele dia inteiro se encontrava com a história do meu amigo Jaime. Tudo mudou quando um outro amigo, lançou uma simples pergunta que abalou minha paz. - Será que é o Jaime que conhecemos?
      De princípio eu duvidei fortemente, mas a dúvida não nos deixa em paz por tão pouco. Perguntei para algumas pessoas sobre as características físicas, os traços marcantes da personalidade e a cada pergunta eu achava uma resposta desfavorável a minhas expectativas. Passei a perguntar sobre antigos empregos e embora ninguém pode me responder com certeza, todas as respostas pareciam me levar a mesma conclusão amarga.
      Acabei passando por uma péssima noite de sono, e o dia inteiro com a companhia da dúvida, não encontrei nenhum jeito para solucionar a dúvida, e somente a noite seria o funeral. Eu já estava decidido a ir somente para poder ficar em paz, me atrasei e não consegui ligar para ninguém que estava no funeral. Liguei para pessoas que poderiam me informar se era o Jaime que conhecia, mas novamente todas as respostas só aumentavam a minha dúvida. Até tentei falar com minha namorada mas ela teve problemas com o celular e não consegui entrar em contato com ela naquela noite. Eu já estava desesperado quando cheguei no lugar. As lágrimas quase escorrendo no meu rosto, eu estava procurando alguém conhecido na entrada mas não encontrei ninguém. A cada passo eu me aproximava de ter que descobrir a verdade sozinho e o desespero de saber que encontraria o Jaime, meu Jaime, ali naquela noite me tomava a cada passo. O local estava tumultuado, mesmo sendo uma igreja enorme estava quase cheia. Não conseguia ver nada além de cabeças na minha frente, decidido me lancei no meio da multidão e fui empurrando até que enfim meus olhos descobriram a verdade.
      Lembra que eu disse que gosto muito de ditos populares, provérbios e da sabedoria do povo? Há muitas que ensinam sobre ansiedade, o desespero, evitar dar asas a imaginação. Algumas dizem que o apressado come cru, quem não tem paciência sofre sem motivo, que a vida é cheia de surpresas. E eu adoraria dizer a vocês que eu me enganei, que meu amigo Jaime não estava nesta história, mas não poderia dizer isto sem estar mentindo.
      E se não fosse a história dele, eu teria deixado de aprender uma valiosa lição, que agora que a aprendi, não sei se posso viver sem sabê-la. Eu finalmente havia saciado minhas dúvidas e minhas lágrimas finalmente brotaram. Meu grande amigo de longa data, desde a mais tenra infância estava lá, alguém que eu amava como se fosse um irmão.
     E o que mais aumentou minha dor. Ele não havia partido. Ele era o cônjuge que sobreviveu, aquele que teria que viver dia após dia sabendo que sua amada já não estava mais ao seu lado.
     Ela faleceu em trabalho de parto e um dos gêmeos não sobreviveu, ele criaria a filha que já tinha cinco anos e a recém nascida por todos os dias de sua vida daquele dia em diante, sem ela. Eu chorei como uma criança, não conseguia segurar minhas lágrimas e nem sequer falar. Havia um nó na minha garganta que não me permitia soltar qualquer som que não fosse algo semelhante a uma criança chorosa resmungando sobre coisas incompreensíveis. Eu era só lágrimas e uma alma quebrantada novamente.
      Quando o vi Jaime estava fazendo um discurso.
     - Ela foi uma pessoa alegre, e é assim que eu gostaria que vocês se lembrassem dela. Não tenho ninguém a quem culpar os médicos fizeram todos os exames e nenhum deles indicou complicações. Deus a levou para um lugar onde eu tenho certeza que ela vai estar me esperando e eu sou grato por Ele ter colocado ela em minha vida. Ela me tornou uma pessoa muito melhor e eu só pude a amar em troca!
     As palavras dele me marcaram profundamente.
     Sou cristão desde minha adolescência, graças ao Jaime que me convidou para ir com ele à igreja, e por isso creio na vida eterna após a morte. Aliás eu pensava que acreditava corretamente nisso até aquele dia. Jaime foi tão sereno em suas palavras e embora estivesse visivelmente triste e abatido como alguém que não dormiu nada a noite toda. Seu jeito ao dizer que a amava transbordava de uma fonte tão profunda que eu duvido que um dia vai secar. Ao mesmo tempo estava tão cheio de perdão e esperança que eu não pude fazer nada senão crer em cada palavra.
     Agora graças ao Jaime acredito de uma outra forma, uma forma melhor, na vida eterna. Aprendi uma lição naquela noite, uma lição para a minha alma. Tenho menos paz na maioria dos meus dias do que Jaime naquela noite. Embora eu diga que creio em muitas coisas, poucas delas foram postas a prova para que eu mesmo seja convencido. O contraste do meu eu frio no domingo de manhã quando recebi a noticia do falecimento e do meu eu perdido na segunda de noite me prova que ainda estou perdido em muitas das coisas que afirmo ter convicção.
      Depois de um hino me aproximei com dificuldades e foi quando percebi o quanto eles eram pessoas amadas. Havia uma multidão para honrar a memória dela e prestar as condolências a ele. O Jaime sempre foi assim deste jeito, desejado por todos. Quando finalmente cheguei até ele Jaime me chamou pelo meu apelido, não pelo meu nome, mas meu apelido de infância e me abraçou. Fui mais consolado do que consolador naquela noite e meu amor por ele fez mais bem a mim do que a ele. Da mesma forma que o fez naquele dia que nos reencontramos e ele me falava de sua nova vida e de sua filhinha recém nascida.
      Apenas uma noite antes deste funeral eu dizia, para uma amiga ser forte e ajudar a curar as feridas emocionais de um viúvo chamado Jaime. Naquela noite fui um homem que encontrou cura no funeral da esposa do mesmo Jaime, meu querido amigo.
      Se existe alguma sabedoria nesta história para você, eu não sei dizer. Mas eu vivo um velho provérbio de maneira totalmente nova graças a ela. Numa tarde em que conversei com Jaime e ele me falava da sua vida, e na noite em que fui ao funeral de sua esposa para consolá-lo, embora foi eu quem mais fui consolado. Eu percebi que ao amá-lo, fazia bem a mim mesmo. O ditado popular diz que, em relacionamentos ganha o que for amado primeiro. Hoje eu posso afirmar que ganha qualquer um que amar. Pois o amor dura para sempre.