09/07/2019

Poeta Guerreiro - "É uma pena menina"


- Levante-se moleque! - Bradava o velho capitão com o jovem aprendiz.
- Estou tentando. Meus braços não conseguem mais levantar a espada. - Respondeu o arremedo de adulto, um rapazote caído sob a sombra da ameaçadora figura do capitão.
- Se não se levantar, vai morrer no próximo golpe.
Era uma rotina normal para o pequeno Baldvir. Nascido de família humilde, seus pais haviam morrido durante a invasão do povo de Granferida. Por sorte o velho capitão Istvan tomou a criança sob sua tutela, e por isso o jovem era grato, não seria mais um órfão a passar fome nas ruas, apenas um soldado bastardo entre as fileiras do fronte.
Treinava e trabalhava duramente desde bem pequeno, carregando baldes de água e limpando as tendas dos soldados. Aos 8 aprendeu a limpar carcaças de caças e cozinhá-las, ajudava também a carregar as provisões sempre que levantavam acampamentos. Aos 10 aprendeu a caçar com arco, corria diariamente de um acampamento a outro, levando e trazendo informações ao velho capitão, que o tratava com o mesmo rigor de todos os outro recrutas, bem mais velhos que ele. Aos 12 aprendeu a brandir uma espada e além de levar e trazer informações entre os acampamentos, passou a carregar uma mochila cheia de provisões, para socorrer algum batedor ferido que encontrasse perto do fronte de batalha. Aos 14 servia como batedor, percorrendo os campos próximos a linha de frente, em um dia qualquer avistou ao longe dois inimigos que vinham em sua direção. Silente e arguto, escondeu-se em um arbusto com o arco em mão e flecha armada, finalmente chegara o dia em que caçaria uma presa diferente, desta vez ajudaria seus irmãos de batalha reduzindo o renque dos adversários.
Eles se esgueiravam pelas moitas, tentavam passar desapercebido, mas os olhos e ouvidos de Baldvir eram bem treinados. Dentre os dois, escolheu o que parecia trazer maior perigo e das sombras travou sua mira, esperando a distância e momento para um tiro certeiro e fatal. O arco do garoto zuniu e a flecha serpenteou pelo ar até encontrar fatalmente o coração de seu alvo. Uma morte limpa e rápida. O feito havia revelado sua posição e sobrara pouco tempo para disparar outra flecha. Antes de erguer seu arco pré-armado, procurou com os olhos o alvo sobrevivente.
Uma criança, mais nova que ele, devia ter pouco mais que 8 anos de idade. Se debruçava sobre o corpo inerte do outro que carregava uma flecha de penas negras cravada no peito. Ambos já estavam ensanguentados de ferimentos anteriores, a criança gritou em desespero. Baldvir não conhecia a língua deles, não era capaz de compreender literalmente o que a criança dizia em agonia. Mas não era necessário entender aquelas palavras, os gritos de agonia de uma criança que perde seus pais é uma linguagem universal e Baldvir sabia disso muito bem. Ela olhou para ele com um furor inumano e com um machado, muito maior do que ela poderia utilizar com qualquer destreza correu em direção dele. Então ele disparou sua segunda flecha.
Até este dia, Baldvir jamais reclamou de sua situação, havia antes de tudo, uma gratidão silenciosa por saber que cada dia de vida, desde que se tornara um órfão, ele devia ao austero capitão. Alguns diriam que o garoto teve azar, que vivia em sofrimento, até mesmo que ele sofria maus tratos. Mas Baldvir não. Ele sabia que, apenas os que viviam nos frontes, como ele e seus irmãos de batalha, conheciam uma dura realidade que os camponeses, comerciantes e nobres, seguros e protegidos pela bravura e sangue dos homens que diariamente se enfileiravam, arriscando suas vidas para que o resto do reino prosperasse em paz, jamais ousaram imaginar. E exatamente por conhecer os horrores que sofreria nas mãos dos selvagens de Granferida, ele demonstrava com  toda a dedicação e esforço a mais pura e sincera gratidão ao homem que considerava como um pai.
- ISTVAN!!!
Gritava o garoto ao adentrar o acampamento onde se encontrava o capitão. Estava chovendo e o crepúsculo fazia com que as gotas de chuva brilhassem como se fossem pequenas chamas douradas. Baldvir não entendia porque os seus olhos ardiam tanto, nem porque seu peito doía tanto a ponto de lhe atrapalhar a respiração. Ele trazia o corpo da criança com uma de suas flechas nela.
- Por que essa gritaria moleque? - bravejou o capitão ao sair de sua tenda. 
Era a primeira vez em anos que o garoto estava fora de seu posto. O capitão sempre sizudo, deixou escapar uma expressão de espanto. Não pela criança selvagem de Granferida, desacordada e ensanguentada no colo dele, mas porque, nem mesmo a chuva torrencial conseguiu esconder as lágrimas de dor e desespero que escorriam pelos olhos do garoto.

... continua